20 anos de Central do Brasil, o grande clássico do cinema nacional
Um filho em busca de um pai. Uma mulher à procura de um filho. Um filme à procura de um país
O ano era 1998. À época, este que vos escreve possuía por volta de 12 anos. Internet era distante, a taxa de analfabetismo do Brasil era altíssima, e uma das promessas da campanha eleitoral que havia acabado era exatamente combatê-lo. A telefonia estava prestes a mudar, com mais concorrências (quem é de São Paulo vai lembrar das propagandas com Embratel, Telefônica e afins). 98 também foi ano de Copa, o que sempre gerou no Brasileiro um patriotismo pontual.
Foi quando veio “Central do Brasil’ em Abril. Nele, temos Dora (Fernanda Montenegro, de “O Auto da Compadecida”). Dora é uma ex-professora que ganha uns trocados escrevendo cartas para pessoas analfabetas na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Sua rotina a faz conhecer o menino Josué (Vinícius de Oliveira), que perde a mãe e fica sozinho na estação. À contragosto, Dora precisa levar Josué ao encontro do pai que ele não conhece no Nordeste, e neste encontro inesperado de uma mulher ranzina e um menino arredio, assistimso o convívio à medida que atravessam o país.
O que faz de “Central” o que ele é
“Central do Brasil” é um retrato nítido de um Brasil visto do alto, pra fora das capitais e do pseudo-conforto em que se vive nas metrópoles. Tudo nele reflete o país que se tinha nos anos 90, com algum progresso, mas de extrema pobreza e simplicidade. Mesmo no início do filme, onde temos cenas no Rio de Janeiro, o filme de Walter Salles (também de “Diários de Motocicleta”) foge de apresentar a beleza das praias ou os carros passando que sugerem vida confortável: Ele se passa de dentro de uma estação, literalmente, onde todos os dias milhares de pessoas comuns percorriam quase invisíveis no mar de gente.
Colocar um menino vindo do nordeste e que acaba de perder a mãe em um ambiente deste é de mexer com o sentimento de quem assiste: Quando se assiste e se é criança/adolescente (como este que vos escreve era à época) faz o espectador criar um entendimento e desespero do “e se fosse comigo”. A solidão de Josué é a solidão de qualquer um que perde o chão na mesma situação, ao mesmo tempo que Dora, uma mulher ranzinza e pronta pra largar o menino como puder, também é plenamente fácil de se encontrar.
À medida que o filme se torna um road movie, é que vamos ganhando mais conexão entre os dois: É quando somos apresentados a uma Dora que se desarma da casca de “durona”, enquanto Josué se vê obrigado a confiar naquela mulher que está com ele. Essa troca faz toda a emoção do filme, que segue cruzando o chão de terra das estradas que passa.
A verdadeira guinada do cinema brasileiro
“Central do Brasil’ é o verdadeiro filme da retomada nacional. O Brasil já havia tornado a produzir filmes de fato com “Carlota Joaquina” (1995) e pouco antes arrancado elogios com obras como “O Qu4trilho” (1995) e “O que é isso, companheiro?” (1997), mas somente à luz deste último, o Brasil deu mais vazão a um estilo bem peculiar seu: O cinema mais marginal: Obras que não miravam a fantasia, mas a realidade; Um cinema que olhava para o jornal da semana e refletia na tela o que lia, e que fez escola para longas de sucesso no futuro como “Carandirú”, “Cidade de Deus” (2012) e “Tropa de Elite”, só pra citar os mais fortes na memória.
Produção humilde, participações gigantes
Pra dar vida à fictícia “Bom Jesus do Norte”, a produção fez um tour pelo nordeste Brasileiro, passando por sertões da Bahia e Pernambuco. No total, mais de 10 mil quilômetros foram percorridos até chegar à Sertânia (PE), e fazer ali a filmagem da cidade destino de Josué.
Além do protagonismo de Montenegro e Vinícius de Oliveira, o filme contou com participações memoráveis: De maneira especial, temos Marília Pêra como Irene, a amiga que atua como uma “voz da consciência” de Dora. Além de participações pontuais de Othon Bastos (“Nosso Lar”), Otávio Augusto (de novelas como “Vamp”) e Caio Junqueira (“Abril Despedaçado”). “Central do Brasil” também marca uma das primeiras atuações de Matheus Nachtergale em um filme nacional, antes de sucessos como “O Auto da Compadecida” e “O Bem Amado”.
O roteiro foi idealizado por João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein. O que fizeram em “Central Do Brasil’ abriu portas que os credenciaram a projetos que os tornaram conhecidos hoje, tanto em novelas como “A Muralha” (2000)”, “Avenida Brasil” (2015) e “Segundo Sol” (2018) quanto em filmes como “Pequeno Segredo” (2018), “Faroeste Caboclo” (2013) e “Chico Xavier” (2010).
O engraxate que virou ator
Vinícius de Oliveira saiu do aeroporto Santos Dumont para as telonas inesperadamente. Engraxando sapatos no aeroporto com o irmão, ele encontrou o diretor Walter Salles que o convenceu a fazer um teste para o filme, que viria a ser “Central do Brasil”. O inesperado ator seguiu na carreira, e hoje está como Saulo da série “Magnífica 70”, da HBO.
Aclamação e Oscar
A produção do filme teve mãos internacionais e o impulsionaram para festivais estrangeiros. Inicialmente, o longa foi exibido na Suíça e posteriormente, no renomado festival de Sundance, nos Estados Unidos. A chegada a um festival como o americano deram notoriedade à Central do Brasil e o alçou para reconhecimentos ainda mais notórios: Ao fim, a história de Dora e Josué ganhou 31 prêmios e foi indicado para mais 21 honrarias do cinema em todo mundo, incluindo o Globo de Ouro e o BAFTA de 1999 de melhor Filme estrangeiro.
Ao fim, a academia também reconheceu “Central do Brasil” e o indicou a duas categorias em 99: Melhor Filme Estrangeiro (que perdeu para “A Vida é Bela“) e melhor Atriz para Fernanda Montenegro, em um prêmio concedido a Gwyneth Paltrow por “Shakespeare Apaixonado” que gera discussão até hoje entre os especialistas.
À despeito das controvérsias, Fernanda Montenegro entrou para a história como a primeira (e única até agora) atriz brasileira a ser indicada ao Oscar de melhor atriz. A própria reconheceu que não esperava a indicação, em entrevista dada ao apresentador americano David Letterman.
Pra eternidade, um dos melhores filmes nacionais
Olhando para trás e relembrando como somos hoje, ainda vale MUITO reviver “Central do Brasil”. Pelo que é, pelo que significa e pelas emoções que gera. É um clássico do cinema nacional que traz lágrimas e quiçá orgulho, um orgulho que dribla o futebol e faz bater no peito um sentimento bom pelo país que tanto se rasga em contrastes, mas que foi colocado em tela de uma forma que o mais desavisado estrangeiro também pode entender. “Central do Brasil” é icônico e único até hoje, e só uma diva nacional como Fernanda Montenegro e a simplicidade de um menino inocente como Vinícius de Oliveira poderiam formar. Passados 20 anos, ele deixou de ser só um bom filme para entrar no hall de uma das maiores obras já concebidas no Brasil, seja por si próprio ou seja pelo que significa para todos os que vieram depois.