Cidade Invisível: Folclore brasileiro para um novo público
A primeira impressão que tive ao assistir aos primeiros minutos de “Cidade Invisível“, nova produção nacional da Netflix criada por Carlos Saldanha (indicado ao Oscar pela animação “O Touro Ferdinando“), foi como conheço pouco (ou pra ser mais sincero, absolutamente nada) do nosso próprio folclore.
Quando criança, haviam poucas opções que abordavam o tema. E as poucas que tinham nunca falaram comigo, estava na fase dos tokusatsus e animes da extinta TV Manchete.
E enquanto assistia o primeiro episódio, já completamente absorvido pela trama e envolvido pelo mistério, percebi que minha única referência era o “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, a clássica obra de Monteiro Lobato, a qual nunca apreciei em seus vários formatos. E me perguntei “por que algo como essa produção demorou tanto para acontecer?”. Principalmente pelo rico aspecto que a produção carrega.
“Cidade Invisível” traz, de forma inspirada e com um apelo maior para uma audiência que pede produtos com uma pegada de mistério, uma enorme fomentação da nossa cultura para o cenário mundial. E, mais importante, para nossa própria identidade.
Sobre o que é a série?
Na série, o policial ambiental Eric (Marco Pigossi, de Tidelands) tenta seguir com sua vida criando sua filha Luna (Manuela Dieguez) 1 mês após a misteriosa morte da esposa Gabriela (Julia Konrad), que defendia um pequeno vilarejo de ser apossado por uma empresa que pretende criar um resort no local.
Até descobrir um boto rosa morto na praia. Fato que, aos poucos, se revela estar ligado à morte de sua esposa. Eric, que ainda não superou a repentina morte dela, faz de tudo para chegar à verdade da situação. E acaba descobrindo mistérios ligados a um mundo completamente místico.
O clima de suspense policial misturado com o fantástico é o que dá o charme à produção. E aos poucos somos apresentados aos personagens folclóricos, já totalmente inseridos em nossa cultura para disfarçar a sua presença.
São inseridos de forma muito criativa, onde os detalhes são cruciais para revelarem suas reais identidades. Isac (Wesley Guimarães) o Saci (sacaram!?), é um garoto que usa da sua malandragem e esperteza para sobreviver nas ruas.
Camila (Jéssica Córes) é a Sereia, que seduz os homens com seu canto, em um excelente momento com o uso da música “Sangue Latino”, da banda Secos e Molhados. Além da performance de Camila, o uso da música e da cena reflete o estado de Eric em relação ao seu luto, em como ele desabafa sentimentos como culpa e arrependimento em relação à filha por não estar presente por ela quando ela precisa.
Todos são liderados por Inês (Alessandra Negrini), que lidera todos como uma espécie de “mãe”, tomando as decisões, mesmo que difíceis, necessárias para manter o segredo. A atriz está inspiradíssima, encontrando um perfeito tom sedutor e ao mesmo tempo sob total controle.
Não só Negrini, mas o elenco todo está muito afiado, vendem seus personagens muito bem. E tem a chance de mostrar suas várias nuances ao longo da temporada, graças a uma trama muito bem conduzida.
Folclore nacional para um novo público
O tom infantil visto em encarnações passadas dos personagens é totalmente deixado de lado. Em “Cidade Invisível”, as representações folclóricas são abordadas de forma mais adulta, condizendo com o público que a produção pretende atingir.
Bato muito nessa tecla de “representações anteriores” pois fiquei muito impactado de perceber a falta de materiais e produções do nosso rico folclore para diferentes públicos. E do tão pouco que conhecia esses personagens, além de seus nomes.
Engraçado como, em comparação, aprendi muito sobre culturas com produções televisivas. Garanto que boa parte da minha geração adquiriu um fascínio pela Mitologia Grega graças ao herói Hércules, que tinha uma série e um longa animado da Disney, e principalmente, ao anime que virou cult, Os Cavaleiros do Zodíaco.
Mas houve uma renovação do interesse desse público graças à livros infanto-juvenis como o do herói Percy Jackson. O mesmo não aconteceu com o nosso folclore. O mais próximo que tive contato na infância foram os quadrinhos da Turma da Mônica. Esses sim, sempre se renovando em várias mídias, atendendo a diferentes públicos.
O editor-chefe da Maurício de Sousa Produções, Sidney Gusman, fala que essa renovação se dá pela preocupação do criador, Maurício de Sousa, em manter suas histórias atualizadas, falando a língua do dia e da hora: “dessa forma, geração a geração, o interesse sempre se renova.”
Falta de pluralidade indígena
Um ponto que inicialmente me incomodou foi onde a história se passa. Pois, se tratando do nosso folclore, que tem uma ligação muito mais forte com o Norte e a área indígena do país, tinha a certeza que essa história seria contada através dos olhos daquele povo, e não sob a ótica urbana do Rio de janeiro.
Ao pesquisar para esse texto, vi que isso não foi só uma preocupação mas que, segundo a matéria de Eduardo Filho para a Veja, gerou uma controvérsia ao não constar nenhuma representação indígena, seja na frente ou atrás das câmeras.
Pelas redes sociais ativistas e sociólogos, mesmo exaltando a qualidade da produção, comentaram a falta que fez uma personificação maior da cultura além das pequenas aparições ao longo dos 7 episódios. Contar a história pelo ponto de vista indígena, elenco sem representatividade e falta de estudo para com os personagens.
Tirando as reclamações mais inflamadas, eu concordo que a série poderia ter esse cuidado extra, já que boa parte da origem/história desses personagens está ligado as tradições indígenas.
Sucesso internacional
Como o streaming se trata de um serviço mundial, é importante medir essa aceitação não só no território local mas em outros países. E Cidade Invisível cumpre esse feito muito bem.
A série se manteve no Top 10 dos mais assistidos em mais de 40 países, incluindo um 6º lugar por aqui. Mesmo com uma pequena representação, a conquista é ótima para levar a cultura e o folclore nacional para várias partes do mundo.
Apesar dos erros de representatividade (que podem ser facilmente consertados na segunda temporada), Cidade Invisível é um excelente entretenimento e cumpre sua função em reforçar a nossa identidade através das nossas lendas e nossos folclores.