Coluna: A Pequena Sereia responde ao racismo na própria música que a acompanha
“Out of the sea” faz a Disney inconscientemente acertar a decisão só na troca de perspectiva
Desde que a Disney começou a onda de remakes de suas obras, várias vezes foi levantada a questão de ser válida ou não uma revisita à seu próprio catálogo. Mas aparentemente, só em “A Pequena Sereia” se gerou uma repercusão de uma personagem pela cor da pele dela.
Desde que foi anunciada, Halle Bailey (de “Grown-Ish”) já foi bombardeada pelo furor da internet e pelo racismo disfarçado de crítica ao filme que nem saiu. Alguns inclusive, atrás da frase simplória “sereia negra não faz sentido”.
O recado aqui é simples: Primeiro, sereia nem existe. Segundo que, assim como diz Matheus Maltempi no nosso podcast, se alguém está discutindo a cor de pele de algum personagem, é racismo sim, sem muito mais a argumentar.
O que a banda podre da internet não foi capaz de entender é o que está nas entrelinhas, posto na canção que acompanha o vídeo. A Disney escolheu a música “Part of the World” (Out of the Sea) pra tocar no primeiro teaser. No original de 1991, é a canção que Ariel canta e descreve que, apesar de ter visto em sua caverna um montão de itens pertencentes aos humanos, ela ainda quer mais e deseja ver o que o universo “Sob a água”, quase como quem deseja uma viagem ou uma nova experiência, algo que mesmo na versão em português foi possível traduzir de leve.
Garota branca x garota negra
O que a música tem a ver com isso? Basta sair do mar e vir pra cidade, e botar em perspectiva a menina que quer conhecer o mundo com a menina que quer ser mais que o que é naquela caverna. Sendo mais direto. Basta ler a letra da música e pensar numa garota branca e uma garota negra descrevendo a letra num mundo real. Esta é a discussão que foi perdida enquanto se discutia a burrice de pensar se existe sereia com cores diferentes.
Maybe he’s right Maybe there is something the matter with me I just don’t see how a world that makes such wonderful things could be bad Look at this stuff, Isn’t it neat? Wouldn’t you think my collection’s complete? Wouldn’t you think I’m the girl who has everything? | Talvez ele esteja certo Talvez haja algo de errado comigo Eu só não vejo como um mundo que faz coisas tão maravilhosas pode ser ruim Olhe para essas coisas, não é legal? Você não acha que minha coleção está completa? Você não acha que eu sou a garota que tem tudo? |
Quando uma criança que cresce com privilégios diz “Talvez haja algo de errado comigo” neste contexto, podemos pensar em alguém que tem de tudo, mas ainda está inconformada, como acontece com a Ariel da animação. Ela era uma acumuladora, inclusive, com todos aqueles cacarecos da terra que ela coleciona em sua caverna. Ela sempre teve tudo ali, mas o seu desejo de sair pra ver de onde vem aquilo pode ser visto como loucura. Afinal, já está tudo ali, ao seu alcance. Mas, e quando esta frase sai da boca de uma negra?
Alguém que vive numa sociedade que discrimina, persegue e mata somente pela cor… não te soa muito diferente quando uma menina te diz “talvez haja algo de errado comigo“? Não te bate diferente a mesma frase?
Chegar a algum lugar
I wanna be where the people are I wanna see, wanna see ’em dancin’ Walking around on those – what do you call ’em? – Oh, feet | Eu quero estar onde as pessoas estão Eu quero ver, quero vê-los dançando Andando por aí com seus – como você os chama? – Ah, pés |
Quando a frase acima sai de quem já teve oportunidade de berço, ver “onde as pessoas estão” e conhecer seus costumes leva à outros ares. Viajar, conhecer países, ver culturas distintas… coisas que alguém que já tem alguma estrutura na vida pode almejar e fazer muito mais. Enquanto isso, alguém que nasce à margem da sociedade não está ainda preocupado com conhecer o mundo… porque simplesmente não lhe é permitido sequer andar pelo centro da sua cidade sem ser julgado.
Não é drama. É estatística. E tá no jornal nosso de todo dia, cantado por Racionais, por Facção Central e por tantos outros que são vistos como marginais. É o pertencimento que Emicida citou em seu especial da Netflix, no teatro de São Paulo, e que aparentemente não foi compreendido, já que em 2022 ele teve de ouvir de preconceituosos que ele supostamente estaria sendo hipócrita por criticar a riqueza estando ele utilizando uma roupa de grife, como se fosse possível equiparar a diferença entre uma pessoa da favela que leva 30 anos pra conseguir comprar alguma coisa e alguém que desde o berço já veio com tudo à mão.
A hora e a vez
Por último, os versos que encerram a canção, sobre quando chegará a vez de cada um, que diz sozinha e sem necesidade de explicar.
When’s it my turn? Wouldn’t I love, love to explore that shore up above? Out of the sea wish I could be part of that world | Quando é minha vez? Eu não adoraria, adoraria explorar aquela costa lá em cima? Fora do mar gostaria de poder fazer parte desse mundo |
Quando se trata de refazer histórias, existe muito mais envolvido que uma simples mudança de personagens. Tem a ver sobre contar histórias e perspectivas. A Disney já havia feito isso bem com o remake de “Anos Incríveis”, agora com uma família negra nos anos 60, e agora faz de novo em menor escala pelo simples fato de escalar uma atriz negra para um papel de um filme.
A Ariel de Halle Bailey quer estar “Fora do mar” que é por baixo da terra deu quem já nasce precisando lutar pra estar no mesmo “nível”, diferente da Ariel da animação de 35 anos, que queria simplesmente conhecer um mundo “fora do mar” que é o seu próprio. São dois olhares diferentes sobre descoberta, muito maiores que a cor da pele de alguém, e que o hater de internet poderia se inspirar para ele também botar sua cabeça pra fora do mar que é sua própria ignorância confortável.