“Batman Begins” e a Queda do Homem do Jardim do Éden

“Batman Begins” e a Queda do Homem do Jardim do Éden

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Em uma de suas falas, Nolan se impressiona com a noção de “um cidadão comum, cujo o único ‘poder’ é ser extremamente rico, se levantar em seu ambiente para lutar pela sua cidade, e como o cidadão responde a essa icônica figura. E se a audiência comprar essa ideia, de mostrarmos um mundo real, uma situação real, aproveitarmos o vácuo das HQ’s de não existir uma versão definitiva sobre a morte dos Waynes, como podemos explorar essa ideia? Esse foi o ponto de partida inicial.”

Como lemos acima, era claro pro diretor que o poder simbólico do personagem só seria eficaz para a audiência se o herói fosse reduzido à sua essência, e que tudo isso fosse explorado em uma realidade palpável, que misturasse o real com o mito.

Ajuda também o fato de Nolan nunca ter tratado a história como um filme de super-herói, e sim como um thriller noir (principalmente o segundo filme, como veremos), baseado em impulsos muito humanos como a raiva e o medo (tema que permeia todo o primeiro filme).

E a história começa com uma queda, tanto literal do jovem Bruce caindo no poço da mansão quanto figurativamente, quando ele, mais velho, se encontra numa prisão, perdido, descendo cada vez mais rumo à sua morte, espelhando a “queda do homem do jardim do Éden.” Bruce e Rachel brincam inocentemente em uma estufa, assim como Adão e Eva no paraíso.

Essa introdução também serve para mostrar a importância da família Wayne como literalmente um pilar de Gotham, com a torre no centro da cidade que eles ajudaram a construir, o que suplementa o seu senso de suficiência e inocência em relação ao seu meio.

Mas assim como Adão e Eva com a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, essa sensação de suficiência é bruscamente interrompida quando Bruce cai no poço da mansão se escondendo de Rachel após roubar dela a ponta de uma flecha, uma arma de guerra. Sua visão, então, é confrontada pelo medo e a animosidade na forma de um enxame de morcegos.

Essa sensação volta a engoli-lo durante a ópera, onde ele percebe que nem mesmo seus pais podem protegê-lo. E, novamente cegos pela inocência, os Wayne saem do teatro por um perigoso beco, quando são confrontados pelo conhecimento do Bem e do Mal na forma do assaltante Joe Chill e todos já sabemos o que acontece a seguir.

Assustado e sozinho, Bruce está nu e cai do Jardim. Seu laço com Rachel, aquela que seria sua contraparte para a união do masculino e feminino, é  desfeito, e ele é deixado sozinho para ser confrontado pelo seu Pecado Original, a culpa pela morte dos pais. 

Na trilogia, Nolan trabalha Bruce e Gotham como um espelho um do outro. A cidade passa a ser uma alegoria do tema que está se desenrolando com a história. Portanto, quando Bruce sofre sua queda, Gotham também perde seus principais provedores e também se encontra em um estágio de declínio em sua sociedade, expondo-a à sua insuficiência, mas cobrindo suas mazelas, onde os mais necessitados se encontram à margem.

Quando Bruce retorna, vemos o que a cidade se tornou: a empresa de seu pai tomada por um CEO corrupto, o sistema judicial da cidade comprado por um poderoso mafioso e o principal sanatório da cidade comandado por um louco.

Para uma melhor representação desse declínio, Nolan mostra a mansão Wayne, um símbolo do esplendor da cidade, parada no tempo. Assim como Bruce, que mesmo vivo, não consegue superar o trauma que o atingiu. Nesse momento ambos, Bruce e Gotham, ainda não estão prontos para encarar seus demônios.

Seu retorno à mansão para o julgamento do assassino de seus pais é motivado por egoísmo, vingança e desejos autodestrutivos, e não um retorno ao centro para uma transformação pessoal. É somente através de um golpe de sorte (Chill foi morto por Falcone antes que Bruce chegasse a ele) e após o tapa de Rachel que Bruce acorda de seu estupor, e percebe o quão fundo no poço ele chegou.

Bruce compreende que, se pretende lutar contra a corrupção e o crime que tomaram a sua cidade, ele precisa antes de tudo entender a mente criminosa, encarar a sua própria insuficiência. Começa então sua descida até os limites do mundo, rumo ao submundo.

Essa descida acontece tanto na forma física, quando Bruce se auto impõe o exílio, deixando de lado seu status de bilionário, cometendo pequenos assaltos para sobreviver, quanto na forma psicológica, onde ele continua sua queda até os limites do seu próprio ser.

Inicialmente essa busca pelo autoconhecimento carece de propósito, fazendo com que ele seja preso, literal e figurativamente um prisioneiro da própria inércia. É quando aparece a figura de Ra’s Al Ghul, lhe oferecendo uma saída dessa inércia para torná-lo um guardião da verdadeira ordem e justiça pela Liga das Sombras. 

A ressignificação do Medo

Aqui começa a jornada de Bruce rumo à sua ascensão, saindo do seu limite e rumo ao seu centro. Para marcar esse momento, Bruce deve colher uma flor, um símbolo de uma nova vida, e levá-la ao topo da montanha, um símbolo de iluminação e esclarecimento, onde lhe espera a promessa de uma nova identidade.

Mas para conquistá-la, Bruce precisa suplementar sua própria insuficiência. Assim, como Adão e Eva, que precisaram trabalhar o solo após a Queda do Jardim, Bruce precisa complementar sua nudez passando por um rigoroso treinamento físico e de seus sentidos.

Mas mais importante, ele precisa suplementar suas próprias fraquezas, ou seja, seus traumas de infância. Bruce compreende que precisa cobrir a si mesmo em seus medos para enfrentar o medo. Abraçar as emoções primitivas que provém desse medo para utilizá-lo contra os criminosos de Gotham.

Mas Bruce também percebe as intenções da Liga, de usar sua escuridão para espalhar a escuridão, a começar por Gotham. Subvertendo tudo que achávamos, a montanha, um símbolo para a iluminação, aqui age como um farol para os perdidos e desiludidos através de uma ideologia tirânica. A flor, que deveria significar o potencial para uma nova vida, passa a ser um símbolo da morte já que, como sabemos, ela é usada como a principal arma para o gás do medo do Espantalho.

Mas a Liga, especificamente Ra’s Al Ghul, também possuem uma representação mais pessoal na psique de Bruce. Ra’s é parte do subconsciente de Bruce, sua sombra. Um pequeno pedaço escondido no seu ser, que o mostrou quem ele pode se tornar se abraçar completamente suas trevas.

Mas ao invés de cair nessas trevas, ao provocar uma explosão no templo, Bruce expõe a escuridão da Liga à luz, ressurgindo fortalecido. Mas ao salvar Ra’s, Nolan nos mostra que Bruce ainda não abandonou completamente esses sentimentos que o guiam às trevas e, portanto, ainda pode perder o controle de sua vida para essa sombra.

Ao retornar a mansão, agora fortalecido em seu propósito, Bruce percebe que a escuridão que tanto temeu pode ser sua aliada, e desce através do poço até as cavernas escondidas abaixo da propriedade, até a sua verdadeira identidade, e é novamente atacado por um enxame de morcegos.

Mas agora, ao invés de se encolher em medo, como criança, Bruce ilumina e se deixa absorver pelo ambiente. Assim, como Adão e Eva, que cobriram a si mesmo com pele de animal, Bruce cobre-se como um morcego, tanto na forma física de uma armadura quanto em uma camada animal. Ele compreende que precisa cobrir a si mesmo de medo e morte, não para espalhar esses sentimentos, mas para enfrentá-los. Usar parte da sua sombra para transformá-la em uma força do bem.

Agora para se tornar um símbolo, Bruce usa a sua nova identidade para assumir o papel de Cavaleiro das Trevas de Gotham. Em sua primeira aparição, Batman se coloca como uma gárgula que, como Jonathan Pageau aponta em seu vídeo, representa o guardião mitológico dos limites do Mundo.

E assim como a gárgula, cujo trabalho é expelir água para fora dos prédios, o trabalho do Batman passa a ser expelir as forças criminosas para impedir que elas inundem a cidade. 

O retorno da Sombra

Agora que Bruce começa a iluminar sua sombra, o Batman começa a, literalmente, iluminar os cidadãos de Gotham à corrupção que toma a cidade. Mas ele, e sua identidade, ainda não estão completamente formados, e suas motivações são colocadas à prova. Estaria ele sendo totalmente devotado à população ou seus atos seriam por puro egoísmo?

Nolan nos mostra isso na forma do Espantalho. Assim como Ra’s Al Ghul, Jonathan Crane também deveria ajudar aqueles em necessidade, mas se utiliza da sua posição como médico para infligir o medo em seus pacientes para prazer pessoal e transforma a água, uma força de renovação, em uma força de destruição.

Se Ra’s representa o poder tirânico que Bruce pode se tornar, o Espantalho representa o egoísmo, o perigo do Batman se tornar uma ferramenta para o seu ego.

É nesse turbilhão de sentimentos que Ra’s Al Ghul retorna. Assim, Nolan nos indica que uma ideia, mesmo em sua forma mais primitiva, nunca se vai por completo. E se não prestarmos atenção, essas forças podem causar grandes estragos na vida.

Aqui Nolan faz duas representações: a morte da antiga ordem com o incêndio na mansão e Bruce esmagado por uma tora, o peso de sua falha e seus traumas. E é Alfred, na figura de velho mentor e consciência de Bruce, que o instiga a seguir lutando. Então as chamas que destroem a mansão se tornam um recomeço, um renascimento, tanto na forma de erguer a tora, seus traumas passados, e a descida até a caverna, para encarar seus demônios internos novamente.

Assim como Bruce teve que novamente enfrentar seus traumas passados, Gotham também precisa encarar sua insuficiência uma última vez. Esse confronto acontece na ilha de Narrows, uma favela que, em um nível subliminar, espelha o beco onde morreram os pais de Bruce.

Portanto, uma espécie de manifestação sociológica do seu trauma. E graças ao gás dissipado por Ra’s, que faz com que todos os cidadãos enfrentem seus piores pesadelos. Assim como Bruce no passado, Gotham também está prestes a ser destruída.

Viajando pelo trem para espalhar o gás, assim como uma doença que se espalha pelo corpo, Ra’s planeja levar o vaporizador até o coração da cidade, para que a cidade desabe sobre si mesma. Essa linha de eventos espelha o que acontece no subconsciente de Bruce, seu trauma ameaçando consumi-lo por completo.

É apenas ao deixar Ra’s no trem, para ser “iluminado” abaixo da Torre Wayne, se libertando desse trauma, de sua raiva, seu ressentimento, é que Bruce pode integrar por completo sua identidade. Agora, Bruce está completamente comprometido em seu papel como o Batman, e da mesma forma, consegue grandes avanços em sua ascensão rumo ao centro e em sua identidade como indivíduo.

Ao mesmo tempo, Batman tirou Gotham da sua morte, ajudando-a a encarar seus próprios medos como o guardião da cidade. Mais importante, ele se torna um símbolo de esperança para a cidade, uma forma de mostrar que ela pode e deve se erguer contra a sua decadência. Para finalizar, Nolan retorna à Mansão Wayne, antes um trauma destruído pelo fogo, agora um artifício para fortalecer o caráter de Bruce e sua crença na missão.

Mas seu retorno à harmonia no Jardim ainda não é possível. Pois embora Bruce tenha fortalecido seu caráter e dado à cidade esperança para um futuro melhor, ele segue desconexo de sua real identidade.

Sua ascensão apenas começou, e agora que ele abriu a porta para suas insuficiências interiores, mais sombras surgirão e será preciso uma maior resistência em ordem de retornar à harmonia com Rachel. E Nolan acrescenta uma nota agridoce ao colocar o tenente Gordon falando sobre a escalada do crime. Um movimento natural que veremos melhor no próximo filme.

Com Batman Begins, Nolan nos entrega um conto de um homem e uma sociedade tomados pelo trauma e medo, tentando lidar com suas insuficiências, tanto internas quanto externas, para transformar a tragédia da sua vida em uma longa e árdua ascensão.

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