“Batman – O Cavaleiro das Trevas” e a Torre de Babel
Agora que passaram-se dois anos desde a última vez que vimos o herói, Batman está completamente maduro e seguro em seu papel. Tanto o vigilante quanto a cidade de Gotham se encontram em uma posição de poder. O submundo o teme por completo e sua figura é aceita pela força policial.
E Bruce, que embarcou nessa cruzada, busca agora uma forma legítima para encerrá-la, em busca de uma possível vida normal. E encontra uma possível solução na figura do promotor público Harvey Dent.
Mas esse senso de suficiência esconde uma ingenuidade latente, que cega a todos das consequências intencionais das ações de Bruce. Há uma escalada negativa tanto da população, na forma de imitadores que inadvertidamente saem para enfrentar o crime, quanto na resposta dos mafiosos ameaçados pelo Batman.
Então, se traçamos um paralelo de Batman Begins com a Queda do Homem do Jardim do Éden, com a cidade sobrevivendo à invasão de Ra’s Al Ghul e encontrado um novo e renovado senso de propósito diante do medo, a história de “O Cavaleiro das Trevas” se assemelha à “Torre de Babel”, com Bruce e a população vencendo a guerra contra o crime e praticamente erradicando a máfia.
Mas assim como na história, tal mudança é marcada pelo excesso de arrogância, com todos correndo riscos de perder a si mesmos nesse novo senso de poder.
Gordon também é afligido por essa arrogância, tanto no uso consciente de policiais corruptos em sua equipe, como em confiar a lei a um vigilante mascarado, que se torna um braço extraoficial da justiça. Só o fato do Batman ter, deliberadamente, desrespeitado as leis de extradição e buscado Lao à força na China, mostra isso.
Outra forma que esse poder e arrogância é mostrado é no uso de Bruce da tecnologia para se tornar uma espécie de “Grande Irmão”, espionando a todos para saber exatamente o que está acontecendo por toda a cidade, inclusive com o intuito de retornar à harmonia do Jardim com Rachel, quando ele a vigia para saber mais dela e seu atual namorado.
Mas essa pretensão à divindade, assim como na “Torre de Babel”, leva os protagonistas a acreditar que não há limites para o que eles podem realizar. Quando Alfred o confronta, Bruce arrogantemente responde que o “Batman não conhece limites.” E como último vetor desse senso de arrogância, somos apresentados a Harvey Dent, o novo promotor público de Gotham. De muitas formas, a pessoa que Bruce nunca pôde ser, um representante da ordem pura, destemido, um aspirante a rei no centro de seu reino.
Nolan constrói Harvey como um Bruce sem o trauma, o homem imaculado, antes da queda, que por consequência substitui Bruce na união com sua contraparte feminina. Mas sua busca à perfeição o torna cego a sua animalidade e sua capacidade para o mal. Em sua devoção à ordem, justiça e controle, Harvey esconde sua semente de maldade, semente essa que crescerá ao longo do filme. Quase que literalmente reprimindo o outro lado da moeda.
Ao invés de lidar com suas insuficiências, Bruce agora precisa sobrepujar seus excessos, suas pretensões à Divindade, e encarar as consequências de suas ações. Tais consequências, quando levadas ao seus limites, se erguem em forma de caos e animalidade. Na forma do Coringa.
Um agente do Caos
Nolan coloca que a forma como os chefões da Máfia soltam o Coringa na cidade é similar a forma que Bruce canaliza seus impulsos sombrios no Batman. Então, assim como Ra’s Al Ghul em “Begins”, o Coringa é outra manifestação da sombra desconhecida de Bruce e de Gotham. Em sua essência, ele é um Batman invertido.
Se Bruce, Gordon e Harvey representam a ordem, justiça e significado, o Coringa representa o caos, a falta de significado e a animalidade. Uma força da anarquia, como Nolan coloca, é “a mais aterrorizante forma de terror. Alguém sem propósito, um completo psicopata.”.
Nolan estabelece visualmente essa força de negatividade e subversão na cena inicial do filme, quando o Coringa coloca seus companheiros assaltantes no banco para matarem uns aos outros até que somente ele sobre. Como o Coringa representa essa total falta de significado, ele também não tem uma origem. E Nolan estabelece o vilão como um animal, um cachorro louco fora do carro, e como uma serpente, com inúmeras cenas onde o personagem rapidamente mexe sua língua.
Mas Jonathan Pageau coloca a representação metafísica do Coringa como o Palhaço que, nas eras medievais, zombava das normas e subvertia as coisas. No filme, o Coringa subverte tudo que os personagens fazem ao seu bel prazer, invertendo a ordem em Gotham, que o caos é a única verdade absoluta e a desejada ascensão não passa de uma farsa.
Da mesma forma, o papel do bobo da corte era zombar de reis e figuras no poder, expô-los à seus excessos, com o intuito de mostrar que, apesar de deterem tanto poder, eles ainda eram só homens. No filme, Nolan usa o Coringa para mostrar a Gotham e ao Batman seus excessos para conquistar ordem e controle. Pois como é possível uma força da lei que deve prezar pela transparência ser encabeçada por um vigilante?
Então Bruce, que cobriu a si mesmo contra o caos e a morte de tal forma, se perdeu em seu caminho rumo ao centro, se tornando o principal responsável por levar sua cidade até o inferno. Para impedir que o caos do Coringa se espalhe, Bruce é pressionado a abandonar sua persona de Batman, expondo-o a refletir no seu paradoxo de fazer atos ruins para bons objetivos.
O plano do Coringa é explorar essa falha até o seu limite, regredindo tanto Bruce quanto Gotham ao ponto de perder sua autoconfiança, ao limite do desespero e da apatia. Então ao invés de buscar a integração, Bruce se acovarda e cede às chantagens do Coringa, à sua sombra, na vã esperança de que, ao abandonar sua missão, seus problemas desapareceriam. É graças a Harvey Dent, que se proclama como Batman, que Bruce supera o seu impulso de se entregar e segue em sua jornada.
Mas o plano de Dent é falho, feito pelo excesso e pela arrogância, a participação de Bruce no plano é a prova disso. Ambos ainda não estão nos termos corretos com seus excessos. Então, embora o Coringa tenha sido capturado, a situação rapidamente se reverte quando Harvey e Rachel são raptados. Essa inabilidade de conter seu nêmesis leva Bruce aos limites do seu poder. Agora o Coringa se torna uma força da tentação, do perigo de Bruce se perder em seus excessos.
Como representação do caos e da animalidade, o Coringa vê valores como ordem e moral como construtos hipócritas e circunstanciais, tirando das pessoas o véu da sua natureza primal. Então, ao invés de forçar Bruce a se submeter, o Coringa provoca-o a abraçar totalmente seus excessos e liberar sua capacidade interna para o caos.
Da mesma forma, o Coringa atiça a lei a se tornar tirânica, “seduzindo” o policial a espancá-lo e armando para Gordon atirar nos reféns ao invés dos bandidos. Até mesmo atiça toda a população de Gotham a matar um de seus cidadão a sangue frio. Tudo para provar que, no fundo, todos somos feras esperando para liberar o caos.
Nolan mostra como todos, incluindo o Batman, são vulneráveis aos truques psicológicos impostos pelo Coringa. O maior exemplo dessa vulnerabilidade é causado pela transformação de Harvey Dent, antes um representante da ordem imaculada, que reprimiu toda sua animalidade e se tornou totalmente suscetível a sua nefasta influência.
Quando ele é levado ao limite com a morte de Rachel, Harvey não caminha rumo à integração, mas literalmente tem seu o ser dividido em dois. Transformando o idealista Cavaleiro Branco de Gotham no arbitrário Duas-Caras, que apenas segue a lei do acaso.
A luta pela alma de Gotham
Tanto a ordem em Gotham quanto o estado mental de Bruce atingem o seu apogeu. Ele retornou à apatia, após a morte de Rachel e a queda de Harvey Dent, e imagina se o Batman faz mais mal do que bem. Então, em um esforço de corrigir seus erros, ele resgata a pessoa que ameaçou expor sua identidade, tirando-o da sua posição de poder, e parte para, uma última vez, enfrentar sua sombra.
Essa batalha também acontece em um nível social, já que o Coringa colocou explosivos nas duas balsas, uma com prisioneiros e outra com cidadãos, e ameaça explodir ambas a menos que uma exploda a outra.
Refletindo a luta interna de Bruce, a dúvida que surge é se os cidadãos de Gotham que representam a ordem no centro, irão adotar a tirania, ecoando com os excessos de Bruce, ou se os prisioneiros, como a manifestação do limite, serão tomados pela capacidade da destruição, espelhando a animalidade de Bruce.
Ou se, em uma 3ª opção, ambas as forças se unirão em harmonia e irão triunfar diante da subversão que ameaça partir a cidade ao meio.
Se em “Begins” Bruce precisa salvar a cidade de sua insuficiência, na forma de uma inundação de gás, em “Cavaleiro” ele precisa salvar Gotham de seus excessos, sua obsessão pela ordem e arrogância. Sua vitória sobre o Coringa se dá ao desistir de seu poder como a figura central na luta contra o crime organizado, despindo-se de suas pretensões ao Divino e depositando sua fé no povo de Gotham.
A subversão também se dá de maneira positiva, quando os cidadãos e os prisioneiros nas balsas percebem sua capacidade para tirania e caos, transformam a falha em uma virtude, e acabam por salvar a cidade de sua descida à morte.
Após seu triunfo sobre o Coringa, Bruce precisa lidar com uma última transformação ao assumir a culpa pelos crimes, a queda e, consequentemente, a morte de Harvey.
Ao conscientemente cobrir a si mesmo em pecado, ele efetivamente chega a um entendimento com sua falibilidade humana, removendo a si mesmo do posto mais alto da hierarquia, o herói de Gotham, e se tornando seu mais procurado criminoso.
Em carregar esse fardo, Bruce reafirma seu papel como o Cavaleiro das Trevas de Gotham e aparentemente salva a alma de Gotham. Mas esse auto sacrifício vem com um preço alto.
Ao escolher esconder do povo a verdade sobre as circunstâncias da morte de Harvey, Bruce mostra que ainda não confia plenamente no povo de Gotham e, por extensão, em si mesmo. Ele perdeu Rachel, sua contraparte feminina, seu retorno ao Jardim foi destroçado.
Então ao invés de ascender, Bruce cai em declínio, em auto exílio e sacrifício punitivo, em cima de uma mentira que cria uma falsa ascendência. Uma que, como veremos a seguir, é facilmente destruída.