Coluna: “De Volta ao Lar” é uma metáfora a luta de classes.

Coluna: “De Volta ao Lar” é uma metáfora a luta de classes.

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Para dar início a esse texto, preciso compartilhar com vocês uma experiência pessoal: assim como muitas pessoas da minha geração, em algum momento desses últimos cinco anos, eu perdi meu emprego.

Isso me mudou sob muitos aspectos, adquirindo alguns traumas e inseguranças, me fazendo rever conceitos sob um diferente olhar ao longo dos anos seguintes. Principalmente, sobre a relação que temos com nossos objetivos profissionais e as expectativas do mercado de trabalho.

Tanto para quem quer entrar nele, quanto para os que já estão e os que querem retomar suas carreiras.

Foi nesse contexto que, por um acaso, revi o filme “Homem-Aranha: De Volta ao Lar”, a primeira incursão solo do amigão da vizinhança no MCU. Eu já tinha alguns conceitos formados sobre esse filme (não tá entre os melhores da Marvel, mas também não está entre os piores. Ele é divertido), mas foi impressionante perceber uma mensagem que, talvez por ter vivido esse novo contexto profissional, não tinha percebido antes.

De forma muito inteligente, se você olhar além das piadas e do drama adolescente, “De Volta ao Lar” fala sobre pessoas frustradas com suas vidas. Mas especificamente, sob o aspecto profissional. E, em sua essência, sobre luta de classes.

Pessoas Frustradas com suas vidas

O filme mostra dois personagens que são punidos por tentar sobrepujar o seu claro papel na sociedade: primeiro nosso herói, Peter Parker, um jovem humilde que ganhou uma incrível oportunidade de ser aprendiz de um gênio bilionário da tecnologia.

Segundo, o “vilão” do filme (explicarei as aspas mais adiante), Adrian Toomes, que quer se erguer para além da classe trabalhadora que já pertenceu. Para salientar isso, o diretor Jon Watts inicia o filme do ponto de vista de Adrian.

Na primeira cena, vemos Adrian exibindo um desenho da sua pequena filha, Liz, no meio dos escombros da Grand Central Station, no que pode ser considerado dias depois da batalha de NY vista no primeiro “Vingadores”.

Adrian fala “as coisas nunca mais serão as mesmas”. A princípio, achamos que ele fala que agora vivemos em um mundo de heróis e alienígenas. Mas abaixo da superfície, Watts nos dá uma dica de que o que está para acontecer a Adrian, mudará sua vida para sempre. E foi o que aconteceu.

O mundo, principalmente no aspecto econômico, seguiu em frente, e o deixou para trás. E quando ele está para começar seu trabalho, recolher toda a sucata e destroços, tanto estrutural quanto alienígena, descobre que seu contrato foi cancelado por interferência de Tony Stark.

Mesmo com sua súplica para a representante, até de forma bastante razoável (lembremos que ele fez investimentos e contratou pessoas para esse trabalho), ela simplesmente responde que “não pode fazer nada”.

E logo em seguida, vem a fala que sintetiza o tema do filme, e que coloca Adrian no rumo que ele irá seguir: um personagem ao fundo diz “não dê um passo maior do que a perna”.

Ambos, Peter e Adrian, se encontram presos nessa ideia. “Não dê um passo maior do que a perna”, “não se exceda”, “saiba o seu lugar”. São frases que já foram ditas a todos nós. E reforçadas por nós mesmos, nossos medos e inseguranças em ousar.

Adrian é reflexo de algo muito atual. Ano passado, os desempregos chegaram a 14,7% nos EUA, a maior taxa em 70 anos. Não é diferente aqui no Brasil onde, em junho do ano passado, registramos a maior taxa de desemprego durante os últimos 3 anos.

Claro que muito disso tem a ver com a crise causada pelo recente coronavírus, mas há um outro fator envolvido, algo que muitos já passaram (eu, incluso): a sensação de que todos podemos ser substituídos.

Quando nós, empregados, ouvimos que podemos ser substituídos, não se trata simplesmente de perder o emprego. Trata-se de perder o valor próprio como profissional. E foi assim que Adrian se sentiu quando ouviu “não dê um passo maior do que a perna”, “não se exceda”.

Havia esse sentimento coletivo de que a coisa certa a fazer (no campo profissional) era chegar no horário para trabalhar, pagar suas contas no fim do mês, e tudo ficaria bem. Mas, assim como no Adrian no filme, parece que somos punidos pela elite milionária.

Adrian leva isso ao extremo, transformando essa sensação de impotência em ressentimento e raiva. E mirando essa raiva em um membro da dita elite milionária, Stark que, mesmo tendo boas intenções (afinal, eram detritos alienígenas que talvez precisassem de uma atenção especial, eu imagino), agiu deliberadamente eliminando o contrato de Adrian para pagar a si mesmo para limpar a cidade.

Nisso, Adrian vê o sistema agindo contra ele para beneficiar homens como Stark.

É tudo sobre Tony Stark

Nos bate-papos nerd sobre o MCU, muita gente concorda que o maior culpado de tudo o que veio a acontecer foi o próprio Tony Stark (Ultron, alguém se lembra?).

Mas em “De Volta ao Lar”, isso é levado para um nível bem mais pessoal. Afinal, Stark é a força motriz do filme. Ambos, Peter e Adrian, herói e vilão, tem suas ações e motivações impulsionadas por Tony. Ambos querem ser mais como ele.

O desejo de Adrian é muito simples: ele quer ser rico. Tanto que sua melhora financeira vem da venda de armas, como Stark antes da sua epifania após seu sequestro.

Mas enquanto Tony rejeita Adrian, lhe negando a tecnologia, ele a dá a Peter de bom grado. Já Peter vê Tony como uma inspiração para ser o herói que almeja.

Lembremos que Peter é retratado no filme como um jovem de classe média baixa. Em Guerra Civil, o vemos construindo um computador próprio com partes que pegou no lixo.

Então surge essa incrível oportunidade de mobilidade social (movimento de indivíduos, famílias ou grupos através de um sistema de hierarquia social) oferecida por Stark. Não à toa Peter se refere a suas horas como Homem-Aranha de “estágio Stark”.

É como se tivessem lhe dado uma incrível oportunidade de crescer em uma enorme empresa corporativa, enquanto gente que trabalha duro como Adrian tem que lutar pelos restos de gente como Tony. No filme, isso é aplicado literalmente, já que Adrian comete assaltos aos caminhões de Stark que carregam detritos perigosos. E, no final do filme, Adrian tenta roubar um jato dos Vingadores com a tecnologia de Tony e dos Vingadores.

Para os fãs da finada (mas nunca esquecida) “Breaking Bad”, Adrian se assemelha muito ao seu personagem principal, Walter White. Ambos eram trabalhadores honestos que entraram em uma vida de crimes para sustentar suas famílias. Não é só aí que as semelhanças ficam:

  • Ambos se ressentem das classes mais abastadas;
  • Cometem crimes para se sentirem mais poderosos;
  • E acabam destruídos pela própria ganância.

E assim como a história de Walter espelha a de seu cunhado, Hank, que viria a se tornar um adversário, a história de Adrian espelha a de Peter, que se torna um adversário no decorrer do filme.

No começo do filme, tudo corre bem para Adrian, com seu novo “empreendimento” às mil maravilhas. Por outro lado, Peter é ridicularizado na escola e não é levado a sério como herói.

Enquanto Peter aspira a ser um herói, Adrian acha que todo esse lance de “herói contra vilão”, e seus codinomes, é infantil. Ele tenta explicar isso ao Peter, na cena do galpão, de forma até bastante condescendente.

Tony também tenta explicar isso a Peter após o desastre da balsa. Ele quer que Peter seja melhor que ele, pois ele era um ricaço egoísta, cuja arrogância em vender armas tornou o mundo um lugar mais perigoso. Stark quer que Peter seja merecedor desse poder econômico que lhe foi dado (no caso, a tecnologia).

Muito semelhante à Willy Wonka, que encontrou no pobre menino Charlie alguém que seria merecedor do seu legado e tocaria o negócio como ele. Nos seus primeiros filmes, Tony tinha como objetivo manter a sua tecnologia longe das mãos de ricaços sem escrúpulos, como ele já foi um dia.

Mas aqui o desafio de Peter é manter a tecnologia longe de pessoas que pertencem à classe trabalhadora. Gente comum, como ele. Traçando um paralelo com a força trabalhadora, vemos as gerações mais velhas ameaçadas pela geração mais jovem, a geração “hipster”, que trabalham mais ganhando menos, moram com os pais, etc.

As aspirações de Peter, de ser um herói mundialmente reconhecido, se assemelham a de um jovem tentando se tornar bem sucedido no mundo dos negócios. Mas diferente do nosso jovem herói, Adrian não deseja isso, ele apenas procura estabilidade financeira para prover pra sua família. A prova disso são seus trabalhos discretos, nada ambiciosos, para se manter “abaixo do radar” das autoridades e, principalmente, dos Vingadores.

Mesmo com as insistências do seu colega, em utilizar um selo de altitude para realizar um grande trabalho, ele mantém sua posição. Até que o cerco aperta e ele não vê outra escolha para não sair de mãos abanando.

Toda essa linha de pensamento, de não voar alto demais (por assim dizer), se entrelaça com o uso contínuo do filme nos termos relacionados a “altura” e “selo/selar” como metáforas para sucesso e falha.

E reparem como esses termos são usados em alguns momentos chave do filme, por exemplo:

1 – Ao invés de graciosas manobras acrobáticas no ar, como o herói é retratado nos filmes anteriores), em “De Volta ao Lar” Peter é constantemente forçado a se arrastar e manter os pés no chão.

Em seu primeiro embate com o Abutre, Peter é facilmente derrotado ao ser levado para o ar, ambiente que o deixa indefeso. Ele acaba sendo salvo por um paraquedas acionado pelo programa “rodinhas” que Stark instalou em seu uniforme.

O próprio uso do programa é outra forma de nos dizer que Peter é muito jovem e inexperiente para estar com os Vingadores.

2 – Na cena em que Peter precisa salvar seus amigos no monumento em Washington de um elevador que estava SUBINDO, ele poderia replicar a famosa cena do beijo do primeiro filme de Sam Raimi. Mas cai no foço do elevador.

3 – Ele desmaia no caminhão do Controle de Danos após bater do teto (impedindo-o de chegar mais alto);

4 – Peter quer se tornar um vingador, cuja base era em uma torre alta, um paralelo aos deuses que vivem no Monte Olimpo. Mas agora sua base é no norte de Nova York (UPstate, em inglês). De certo modo, Peter ainda anseia por galgar os degraus superiores da escala social.

Se olharmos a maioria das obras de cinema e TV que retratam o mundo corporativo, veremos que os CEOs que obtém sucesso possuem características em comum:

  • Sua sala é no andar mais alto do prédio;
  • Suas casas são no norte da cidade (lugar relacionado a pessoas bem sucedidas);
  • Possuem cartões de visita minimalistas (somente com nome/cargo/contato);

5 – No clímax do personagem, Peter é soterrado pelo telhado do galpão pelo Abutre. Após chorar como uma criança e perceber que ninguém o viria ajudar, ele precisa encontrar forças em si mesmo para se erguer;

6 – A sequência final começa no avião dos Vingadores, que está em alta altitude, mas acaba sendo derrubado no parque de diversões em Coney Island, um lugar que representa inocência infantil para as crianças de Nova York.

A metáfora é até mesmo representada pela primeira e última cena do filme. O filme começa mostrando a Torre dos Vingadores na altura, e logo desce para mostrar Adrian no meio dos restos e escombros da batalha, mostrando o seu baixo status econômico. E termina com Adrian na prisão, olhando pra cima, invejando a liberdade dos pássaros voando nos céus.

Mas o que isso tudo significa no final?

Ok, eu falei, falei e falei. Mas o que essas metáforas significam e se relacionam como o tema de “se obter sucesso econômico” e a luta de classes?

Podemos dizer que o destino do Abutre se assemelha com o de Ícaro. Após ele e seu pai, Dédalo, fugirem da prisão, ele é alertado para não voar muito alto por causa do Sol e nem muito baixo, senão se afogaria.

Adrian atua da mesma forma, não cometendo assaltos muito grandes para chamar a atenção, e nem muito pequenos, que não lhe rendessem o lucro que deseja para sustentar sua família. Mas, assim como Ícaro, ele voa muito alto e cai.

Peter também se assemelha com Ícaro, querendo ser um herói muito jovem, sem estar, de fato, pronto. Mas ao recusar se tornar um vingador, mostra que obteve maturidade ao longo do que passou. Aprendendo que ele ainda não está pronto para ser um herói.

Mas a mensagem dada a Adrian é mais sinistra. Para ele, a mensagem da sociedade é “não se exceda! Mantenha os pés no chão”. Mas o problema é que Adrian não é um inescrupuloso empresário, ou um vilão que quer destruir o mundo.

Adrian é simplesmente um pai e marido que quer prover para sua família.

Esse tipo de mal, o mal que vemos diariamente, esse homem comum que foi corrompido, é a verdadeira maldade aqui. Se Tony Stark nos mostra que todos temos potencial para a bondade e para sermos melhor, Adrian é o outro lado da moeda, nos mostrando que podemos facilmente sermos guiados para o mal. Basta:

  • Medo (“eu posso perder a minha casa”);
  • Ressentimento (“Os ricos e poderosos não ligam para nós”);
  • E, principalmente, a crença de que está fazendo a coisa certa.

E isso é algo que todos nós que pertencem a classe trabalhadora, como este que vos escreve, podem se relacionar. Vilões como Thanos, um gigante com visual ameaçador e que tem um enorme exército são fáceis de se identificar. Mas Adrian não, já que pode haver vários “Adrians” em todo o lugar.

Todos nós, nas circunstâncias erradas, podemos ser Adrian Toomes.

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