CeS Entrevista: Ainhoa Rodriguez, diretora de “Um Forte Clarão”
Ainhoa Rodríguez, diretora de Destello Bravio (Um Forte Clarão), concedeu uma entrevista exclusiva ao Cinema em Série e contou como foi a escolha do elenco e detalhes da produção. Ela também explicou como o cinema espanhol está sofrendo com as consequências da pandemia de Covid-19.
Destello Bravio (Um Forte Clarão) é um longa-metragem que apresenta a história de 3 mulheres fortes e determinadas, María, Isa e Cita. O suspense foi vencedor do prêmio especial do júri no festival de málaga, além de muitos outros.
O filme ficará disponível para aluguel no serviço de streaming exclusivo da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, mostra.play, até o dia 04/11.
Ainhoa Rodríguez é diretora de cinema, produtora e roteirista. Seu primeiro longa-metragem, Um Forte Clarão (2021) acaba de estrear na Seleção Oficial da Competição da 50ª edição do prestigiado Festival Internacional de Cinema de Roterdã, com grande repercussão de público e crítica. Ela ganhou o prêmio de Melhor Diretora no Festival Internacional de Cinema de Vilnius Kino Pavasaris, por Um Forte Clarão, que foi também integrante da seleção do 50º Aniversário do projeto Novos Diretores / Novos Filmes, organizado pelo MoMA e o Film at the Lincoln Center. Seus curtas-metragens ganharam prêmios em todo o mundo, sendo destacada pela revista Variety como uma das dez cineastas emergentes na matéria “Talentos espanhóis em ascensão”.
A Mostra Internacional de Cinema de SP traz prazerosas obras que fogem do cinema tradicional. E dentre as sortes que temos, o Cinema em Série pode conversar com a diretora de “Um Forte Clarão” (Destello Bravio), primeiro filme da espanhola Ainhoa Rodriguez, que chegou ao Brasil já rodado dos festivais, incluindo o de Roterdã, na Holanda.
Na conversa, Ainhoa falou sobre os signos do seu filme, que traz elementos do religioso e das tradições de sua terra, mas também conversou sobre machismo, religião, cinema e suas inspirações. Confira tudo depois do trailer abaixo.
Confira a entrevista completa:
Primeiramente, queria te dizer que gostei muito do seu filme e obrigado por topar conversar com a gente.
Queria te parabenizar pelo elenco e por sua busca por mulheres reais. Queria te perguntar o que te motivou a trabalhar com estas mulheres.
Tive duas motivações: A primeira é que eu já havia trabalhado com pessoas que não eram atores profissionais antes e notei que o eles contribuíam comigo como artista e criadora era uma matéria prima absolutamente fascinante, porque traziam suas experiências de vida. E estas experiências não são possíveis com qualquer roteiro ou qualquer livro, então é uma experiência muito rica.
Pra mim é essencial que eles quisessem participar do que lhes propus, porque o cinema tem uma parte séria mas também tem algo de jogo. A mim me fascinava e não me cansava. E por outro lado, também trabalhamos em uma pequena vila de Tierra de Barros, de onde eu venho; E foi como começar com essa mística que nós autores temos de criar desde a origem.
Você conseguiu inserir no filme um diálogo natural, um diálogo real nas cenas, que podem acontecer em qualquer lugar. Muitos destes diálogos falam do machismo na nossa sociedade. Como o cinema pode ajudar a combater os preconceitos e o machismo das pessoas?
O cinema é uma ferramenta poderosíssima, porque nos faz visualizar aquilo que, se não se apresenta, não se acredita que existe.
É muito importante mostrar mulheres além do “bom” e do “mal”, e sim apresentar diferentes perspectivas. Porque não é importante saber se as mulheres são boas ou más, e sim de que as mulheres com seus defeitos, ou com um comportamento “não-louvável”, com diferentes facetas. Algumas sim são boas ou más, mas são vítimas de um sistema patriarcal e econômico. E esta é a chave: Mostrar mulheres com comportamentos diferentes que não perfeitas, não são boazinhas, se rebelam, mas que todas têm em comum estar em um sistema patriarcal que as mantém em uma posição de inferioridade. E ao mesmo tempo, acredito que o cinema precisa que as diretoras mulheres apresentem um outro lado. Nossa experiência feminina não foi contada, então nosso relato está incompleto e absolutamente coxo, pra completar a resposta de representação social no audiovisual. E isto é um problema sério, porque o que vemos é só um olhar: O imperial, a dominante… a que não é diversa…. Absolutamente ortodoxa, fundamentalmente de homem, geralmente branco, heterosexual….
Existe um momento do filme onde as mulheres se queixam que os jovens estão saindo da cidade pra estudar e trabalhar e pode parecer que estão abandonando sua cultura e tradição. As tradições precisam ser modificadas para apoiar as novas gerações ou é a nova geração quem deveria ser mais paciente com as gerações passadas?
Eu gostei do modo que você perguntou porque é bastante complexo: Elas reclamam que não existem mais crianças e que os jovens estão desaparecendo porque não encontram nem saídas, nem recursos, nem desenvolvimento em suas vizinhanças. E aí entra a questão do abandono da vida rural pelas instituições, não só na Espanha como em toda Europa. Veja, estas tradições muitas vezes profundamente católicas, que são comuns nos vilarejos da Espanha e de toda Europa pra mim algumas delas podem parecer errôneas, injustas… Mas uma vez me dei conta que apesar de parecerem injustas e errôneas, elas tinham esse apego às tradições pela população, aquilo tem um sabor também de resistência, era muito poético… porque estão afirmando seu jeito de ser de alguma forma, esta é sua identidade. É aquilo que nos forma como sociedade, no que foram e o que aprenderam. Basicamente, eu coloquei isso no filme porque o que está por vir é este desaparecimento das tradições, dos costumes, porque existem bons costumes que podemos manter, porque são nossa identidade. A começar pelo sotaque de Extremadura que se ouve no filme, que é carregado e as mulheres de rostos e corpos de verdade. São coisas que nos dão nossa identidade, com alma. O problema é o que está por vir, nesse mundo globalizado, onde vão desaparecer as pessoas do campo, e vão todos estar em uma cidade grande, onde se vestem igual, se come igual, vão aos shoppings… Não tenho certeza se isso trará melhorias no que diz respeito à defesa social, gênero ou igualdade, se isso trouxesse uma melhoria na igualdade de gênero ou de trabalho… até poderíamos ter uma esperança. Só que não me parece nada bem, e nos faz sacrificar a nossa alma, e ainda nos tira aquilo que nos fortalecer num mundo globalizado.
Muitas das cenas do filme tem um vínculo com a religião: Existem cenas onde se vêem as mulheres e rapidamente se corta para uma imagem da Virgem Maria, de uma igreja ou algo religioso. Que mais pode nos dizer sobre como a igreja tem influenciado na vida das pessoas e daquelas mulheres, no filme e na vida?
A Igreja mantém esse sistema patriarcal mas digamos que no filme não á um olhar puramente crítico, porque da mesma forma, a igreja é o único lugar para ajudar estas mulheres no seu povoado e tudo que elas tem para fazer ali é ir para sua missa: Vira o ponto de encontro, de interação social; São as atividades que permitem interação e conversa as vizinhas. Então é claro que estes momentos de interação institucionais também são essenciais para manter este sistema: Um sistema injusto, mas também tradicional. E a Igreja são lugares naqueles lugares de pessoas fortemente religiosos onde as pessoas usam para manterem os laços consigo mesmas, e além disso, é o lugar para reafirmar quem são e refletir sobre os mistérios do mundo… fala muito sobre como a sociedade é como refletem sobre um sentido à sua existência e para explicar os mistério da vida: A morte, Deus, o amor… o tempo… Então nesse caso se misturam a religião católica com o esoterismo, porque ao mesmo tempo que estas pessoas se apegam à uma religião, também crêem em magia: bruxaria, na lua… em algum momento é mencionado, Há uma personagem que não se sabe bem se é católica ou adepta à bruxaria, E ao mesmo tempo o filme fala dessa infância perdida e como queremos recuperá-la. A personagem que sonha com uma imagem com montanhas e uma casinha, e ao mesmo tempo a grande xamã, e aí também tem algo pessoal e conhecerão muitas pessoas com essa magia da infância desse sonho de desbravar o mundo, subir mares e montanhas e depois voltar pra casa.
Tem um clima forte de suspense no filme. O quê te influenciou a levar este gênero às cenas?
Acredito que os gêneros precisam estar misturados. E os gêneros precisam servir como ferramentas para o que queremos narrar. E neste caso, se percebe um suspense, quase flertando com um pouco de terror – Porque o suspense é primo irmão do terror – de desaparecer a vida no campo, e também o temor do desaparecimento físico, que é a morte (…) mas também o desaparecimento metafórico, ainda que bem real, que é o da vida rural e das tradições e da indentidade e perda de alma. O filme foi feito sobre isso. É um tema fundamental. O suspense foi a melhor maneira que encontrei para falar sobre isso.
Houve a intenção de juntar esse clima de suspense com a vida dos mais velhos, ou com a sensação de estar mais perto da morte?
Na verdade é algo absolutamente natural Camila… Porque você vê um povo entediado, [um lugar] habitado por gente bem idosa, não existem crianças (não temos crianças no filme, a vila é toda habitada pela terceira idade)… Aquela vila já está marcada para morrer, porque não há renovação, então é inevitável.
Que diretor ou roteirista te inspirou a escrever uma história tão rica em detalhes?
Me fizeram várias vezes esta pergunta (…) Porque eu sou cinéfila, tenho estudado muito o cinema, tenho provado de tudo. Então não tenho UM diretor pra dizer “quero fazer isto”, creio que fui livre pra isso, fiz meu filme pra poder ter uma maior liberdade, tanto na metodologia de trabalho quanto na ética e estética, então nunca disse à equipe: “Queremos fazer isso, veja esse filme”, porque não é assim. Aprendi estudando e analisando os grandes… E um pouco menos ÀS grandes, porque à elas lhes foi menos permitido dirigir. Então aprendi vendo aos grandes “senhoros” – aqui na espanha dizemos “senhoros” como “quase todos homens, poucas mulheres”. Então é evidente que posso utilizar ou reinventar procedimentos, mas estou para transgressão e reinvenção da linguagem que conheço
e que tenho de conhecer em profundidade e aí narrar daqui pra frente. A inspiração é daqui pra frente. Poderia ter feito 5 filmes.
As paisagens são muito lindas. Existe alguma que você goste mais?
Tudo que foi escolhido o foi minuciosamente, posicionando a câmera mil vezes, voltando aos lugares várias vezes escolhendo o ângulo perfeito com uma meticulosidade obsessiva. Tratei de focar na beleza, porque o filme também é uma carta de amor à minha terra, Extremadura, um pouco dolorosa também, porque revela as feridas, mas para curá-las é preciso abrir as feridas, não? Digamos que gostei de “reinventar o poético” e dar esse aclamação poética e cinematográfica à estas paisagens que no fim das contas são tão
e comuns em Extremadura como os pântanos criados pelo homem, que parecem quase um mar. Parece uma ironia, porque do outro lado tem um povoado. Então estão cercados, o pântano cobre o filme. Mas é um pântano artificial, da época do Franco, o que nos conta um pouco das circunstâncias. As serras antigas, que são típicos de Extremadura e são belíssimos, as casas! As casas artesanais que tem um valor não só visual, mas também cultural, quase de proteção de seu histórico, podem notar que é quase uma busca pela beleza das paisagens de onde eu vim.
Aqui no Brasil estamos tristes por todo o ambente cinematográfico-político daqui… E parece que se parte algo quando se perde o incentivo ao cinema, aos filmes, à história. Queria te perguntar como funciona isso na Espanha: Incentivo, ajuda….
É verdade… se perde não somente quando se deixa de fazer cinema, mas quando se perde uma voz heterogênea, diversa… porque aí se oferece somente uma visão totalmente manipulada. Na Espanha, bem, existe um cinema predominante das grandes redes de TV, que é um cinema um pouco comercial, rápido, pipocão de comédia, enfim… Com um “system pátrio”. E existem filmes mais interessantes mas digamos que existe um problema comercial, então digamos que para mim, o mais interessante é saber o que se faz às margens e geralmente são projetos que são difíceis de financiar, principalmente porque são em maioria primeiros projetos, então esses filmes são feitos com uma força de vontade sobrenatural e um orçamento baixo. O triste do cinema é que não conheço outra arte que seja mais escrava da economia do que o processo de filmar, não somente pra um filme pequeno: Pode haver menos interesse artístico mas ainda existe a exigência visual e técnica, ainda temos de ser extraordinários.
Estão surgindo novas visões apaixonantes de diretores e diretoras, sobretudo diretoras e eu só espero que elas possam não só fazer seus primeiros filmes, porque estamos necessitadas de filmes que mostrem esse outro lado, da mulher, e de uma forma transgressora. E que se saia desse sistema comercial, do que se supõe que funciona, porque o público vê o que chega. Se chegar o filme ao público, certeza que vão disfrutar. Comigo aconteceu que um senhor que trabalha num campo ficou emocionado até um intelectual ou um jovem. Precisa fazer chegar os filmes ao público, sabemos que envolve marketing. Espero que chegue uma nova geração de cineastas com personalidade, possa narrar com liberdade e que enriqueçam a cinematografia espanhola, que está carente destes novos olhares transgressores. Outro problema sério foi o fim das salas de cinema. A pandemia foi uma desculpa para acabarem e mandar às plataformas.
Pra mim é muito grave especialmente para filmes, onde se dedica um projeto gráfico e sonoro, porque está roubando do espectador uma experiência única no cinema que foi pra onde o filme foi projetado. Mas quando se vê em sua casa, por melhor que seja a TV ou o som que possua, estão lhe tirando esta experiência, tirando camadas de trabalho. Para mim, este é um tema muito sério: Onde vamos e quem vai controlar estas plataformas?