Mank: Criando Kane?
Em 1971 a crítica Pauline Kael escreveu um artigo no New Yorker sobre Herman Mankiewicz e de como ele havia criado e escrito o roteiro do filme dirigido por Orson Welles, “Cidadão Kane”. Basicamente a ideia aqui é dizer que Welles não teve tanta participação assim na criação do filme para ser considerado o seu autor. Isso é também é o que nos é mostrado o novo filme de David Fincher, “Mank”, que segue a vida do roteirista e mostra como foi que surgiu a ideia de “Cidadão Kane” e como foi escrever o roteiro do filme que não só ganhou o Oscar, como foi e é ainda hoje considerado por muitos um dos melhores filmes de todos os tempos.
O filme dirigido por David Fincher e roteirizado por seu pai Jack Fincher têm muito em comum com o filme de Mank e Welles em termos de narrativa e movimentos de câmera. A história é contada para a gente através de flashbacks de Mank enquanto ele está produzindo o roteiro de “Cidadão Kane”. Para quem não sabe, Mank havia sofrido um acidente e estava de cama quando escreveu o roteiro do filme e aqui vemos ele ditando as palavras do roteiro para uma datilógrafa.
Em relação aos movimentos de câmera, em muitas das cenas vemos os mesmos posicionamentos e estilo de “Cidadão Kane”, funcionando como uma referência e também como escolha estética de Fincher para aproximar ainda mais aquilo que estávamos vendo com o clássico filme de 1941.
Muitos eventos acontecem, vemos todo o problema com álcool de Mank no presente, vemos a não participação de Welles na história, o acidente que deixou Mank momentaneamente imobilizado e a relação de Mank com seus superiores e sua família. No passado vemos como começou seu problema com o alcoolismo e do seu envolvimento involuntário com as eleições políticas estaduais, além é claro da sua relação com as pessoas que teriam inspirado os personagens do roteiro que estava criando.
É interessante que mesmo que ele retratate os eventos políticos da década de 1930, vemos os mesmos problemas e consequências que enfrentamos nos dias de hoje. Por causa de uma ideia de Mank, o estúdio em que ele trabalhava montou uma série de filmagens que hoje facilmente poderiam se enquadrar no que chamamos de “Fake News” e foram responsáveis por eleger candidatos ao redor do mundo.
Esse acontecimento foi crucial na construção de Mank como pessoa. Não só pelo fato de ele ter acidentalmente dado a ideia de fazer aquilo, mas também pelo fato de que muitas pessoas que estavam precisando de ajuda foram usadas para fazer essas campanhas políticas falsas, o que acabou não só resultando na derrota de um candidato, como também em perda de vidas.
Todos esses acontecimentos foram importantes para Mank na construção do seu roteiro de “Cidadão Kane” e quando ele revive tudo em suas memórias decide que não pode cumprir o combinado que havia feito antes com Welles, de abdicar dos créditos no filme, o que gera no filme um grande atrito entre os dois.
Aliás, a figura de Welles é quase como um fantasma onipresente e opressivo. Mesmo quando não está na tela em corpo presente ou em voz, há sempre menção a ele como uma figura poderosa e temível e que parece estar sempre presente ditando o que têm ou não de ser feito.
Falando em Orson Welles e saindo um pouco do filme de Fincher, mesmo que haja esses debates acerca da autoria de “Cidadão Kane” é inegável a participação e a marca dele no filme. Não só pelo fato dele ter sido o protagonista, como também pelo fato de que ele conseguiu idealizar, montar e reunir tudo que havia de melhor na indústria do cinema e conseguiu dar vida a uma obra que mesmo quando assistimos nos dias de hoje parece que não envelheceu nas questões técnicas e de narrativa e isso é um mérito total de Orson Welles e da liberdade criativa que ele teve.
“Mank” e o artigo de Pauline Kael dialogam e se complementam muito bem quando colocados lado a lado, para aqueles que já haviam lido antes do filme a história do filme se apresenta e flui de uma maneira impressionante. Para aqueles que ainda não leram o extenso artigo, o filme pode ser uma entrada para que esse debate sobre a autoralidade volte a ser discutido.