Se o Brasil fosse um país onde as coisas do próprio país aparecessem para os seus, o cinema também seria. E se tem uma coisa que o mandatário atual não deve fazer questão nenhuma de que apareça é justamente algo que potencializasse uma obra que bate como Medida Provisória, um filme que este que vos escreve sequer tem coragem de chamar de Drama, porque é surreal de verdadeiro, e nem consegue vê-lo como ficção, porque é incômodo em um nível tão grande justamente porque é quase um prognóstico do Brasil que se pinta.
Dirigido por Lázaro Ramos, o filme se passa um Brasil futurista mas não muito distante, onde uma lei deu direito à cidadãos de melanina acentuada (agora o termo “negro” foi alterado para outro) de ganharem um ressarcimento do governo como reparação histórica aos 400 anos de escravidão. A lei aprovada inicialmente dizia de uma compensação financeira, que rapidamente o governo altera para outra forma de “reparação”: Enviar todos os cidadãos não-brancos para o continente africano, primeiro à escolha, depois à força.
Desgraçadamente falando, o filme é horrivelmente alinhado com a realidade. Não falta muito, com um trocar de frases, para algo tão medonho como o que acontece no filme vir a se tornar uma proposição no Brasil do presidente atual. Os discursos rasos de ‘não gostou se mude’ que são tão comuns em épocas eleitorais aqui se tornam um “ah é, é uma boa” nas bocas certas dos personagens. Rapidamente, o absurdo vira uma realidade, e um cenário de desespero que nós gostaríamos que não fosse tão próximo de nós, mas que sabiamente o roteiro sabe encaixar em nas coisas do cotidiano que vemos nos jornais e internet afora. Um trabalho muito competente em seu argumento mas colocado com sabedoria na tela faz de “Medida Provisória” um Black Mirror do Brasil. Mais que isso: Todo o roteiro do filme faz questão de encaixar os eventos e citações com simbolismos negros do país: uma câmera mostrando uma rua Machado de Assis… papéis de parede com Ruth de Souza … e até a tacanha medida provisória do filme tem uma ironia: A personagem de Adriana Esteves (“Marighella”) recebe a medida número 1888 num dia 13 de maio.
“Medida Provisória” tem um trio de protagonistas: Seu Jorge (“Cidade de Deus”); Taís Araújo (“Pixinguinha – um homem Apaixonado”); Alfred Enoch (“Harry Potter”). É da boca destes três que saem as falas mais impactantes, as ações mais emocionadas do filme. Enoch tem um destaque durante a trama, por se tornar um símbolo de resistência à medida daquele Brasil retratado. Antônio, seu personagem, é quem tenta interpretar contra-medidas à lei de expulsão dos negros do Brasil, até se trancar em casa, e ser minado pelos vizinhos em seu suprimento de comida e água, numa tentativa de tentá-lo sair de casa e ser preso enfim. Em algum momento, é dito que Antônio tornou-se o último negro do Brasil, que se recusava a sair do país que também é dele. Mas isto porque as autoridades não sabem onde ficam as células de resistência da população, que aqui são chamadas de afro-bunkers. E se isso te faz lembrar dos quilombos, é porque sim, eles são.
O filme ainda tem atuações fortes de duas grandes atrizes: Além de Adriana Esteves, já citada, ainda temos Renata Sorrah, com papéis de vilania como só as duas conseguem fazer e sabemos bem pelas novelas. Aí, entre duas atrizes de currículo invejável deste, Lázaro Ramos teve a coragem de colocar uma senhora que é um símbolo emocional: Dona Diva, uma professora aposentada, que entrou para o elenco do filme e aparece como um foco de doçura, afeto, uma luz de esperança no meio de toda loucura que aparece no filme.
Lázaro conheceu Dona Diva na feira literária de Paraty – FLIP ) e a convenceu a fazer parte do filme. Ele mesmo conta nesta entrevista do canal Brasil, com a própria Dona Diva.
“Medida Provisória” tem a infeliz missão de mostrar o país que estamos. Um Brasil que não interpreta texto, que quando resolve interpretar faz como quer; Um país que se esconde de sua história e que se nega a aceitar suas misérias. Um Brasil com políticos que não tem vergonha de serem amantes de ditadores e lambedores de botas de facistas, que falam sorrindo e parte da população se ilude pensando que é brincadeira.
“Medida provisória” é excelente em sua execução, e dá medo pelo tom de realidade que traz. É incômodo num nível incrível, que merecia mais salas de cinema do que as poucas à que foi limitada e rapidamente foi para o streaming. Tão incômodo como o próprio cinema nacional, que tem que se desdobrar pra conseguir espaço que deveria ser dele mas quem deveria cuidar o rejeita; E incomoda tanto porque é indissociável que o “volta pra África” do filme é só uma extrapolação de absurdos pra quem já teve de ouvir “ame-o ou deixe-o” ou “vai pra Cuba” cada vez e à toda voz que se cobra por humanidade.
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