Quando se extrai mel de uma colméia, o processo envole borrifar um atordoante nas abelhas, dispersá-las e aí sim extrair o mel. Se levarmos a apicultura pro nosso mundo, é de forma bem parecida que se trabalham as violências contra pessoas em nossa sociedade: Grupos se formam, se fortalecem, e quando conseguem um progresso ou um êxito próprio, alguma força se move para dispersar aquela “colméia” e ficar com o “mel” produzido por uma comunidade.
É desta visão que segue este texto sobre “A lenda de Candyman”, o terror dirigido por Nia DaCosta que recentemente ganhou as telas do mundo, após uma longa espera pandêmica. O filme foi lançado no Brasil com críticos tentando de certa forma abafar o nome da diretora – também de “Little Woods” (2018) – elevar o nome já comercial de Jordan Peele (roteirista de “Corra!” e “Nós”), sem perceber o próprio comportamento de dispersão de colméia que causam com isso. Sem querer querendo, essa atitude já tende a dar razão às questões que o longa nos propõe.
Baseado no “Candyman” de 1992, Nia DaCosta traz para hoje a história de Anthony, um artista em ascensão (Yahya Abdul-Mateen II, de “Aquaman”) com apoio de sua esposa Brianna (Teyonah Parris, de “Chi-Raq”). Anthony fica obcecado com a lenda de Candyman, contada à ele pelo cunhado (Nathan Stewart-Jarrett), e mergulha na lenda a ponto de voltar ao bairro de Cabrini-Green , onde a mesma começou, sem saber que daria início a algo muito maior – e pior.
A tentativa de abafar o nome de Nia não impediu que ela imprimisse uma assinatura visual no filme. Como o filme sempre volta ao bairro que está deixando de ter casas e começando a ter prédios, o longa também joga com esse alto-baixo com câmeras em diagonal, visões de alto ou de baixo de uma escada, como alguém que vê um edifício.
Mesmo nas cenas de terror e assassinato, quem assiste vê essa “suspensão” dos personagens pelo Candyman, uma “elevação” que se faz que joga com um tema por baixo do filme: A gentrificação.
Quem conta a lenda é o o personagem de Stewart-Jarret ( que também fez a série “4 Casamentos e um Funeral”), mas quem explica a lenda à Anthony é outro: Burke, o gerente de uma lavanderia do bairro (Colman Domingo, de “Selma”). É ele quem o papel daquele personagem misterioso, que conhece a lenda quase que por vivência, e o apresenta ao protagonista, comum em suspense. É Burke quem associa o Candyman à dois problemas sociais: O racismo enraizado no americano, e a gentrificação.
Gentrificação é um termo utilizado para descrever as mudanças na evolução em uma vizinhança ao longo de um tempo. Às vezes um bairro parece ter uma expansão ou melhoria para a população, mas a gentrificação tem o problema de não ser para quem está ali naquele lugar, mas sim uma mudança também de moradores; as transformações do bairro não são necessariamente mudança de vida de quem mora ali, e por vezes só aproveitam do ambiente prestabelecido para impor mais comércios, que depois encarem o bairro, e expulsam os residentes.
Isso é uma explicação muito superficial do termo. Mais informações podem ser vistas aqui, aqui, e aqui.
“A lenda de Candyman” trata a gentrificação como uma apropriação dos bairros ocupados por negros, e uma consequente exploração do que o povo ali já havia conquistado. Some à isso a violência policial, o racismo, e a injustiça decorrente, e a entidade Candyman é descrito por Burke como uma consequência, um monstro que brota dali como um reagente daquela situação. Tanto que o Candyman não é descrito como UM homem. Mas como vários. É uma colméia, como o personagem descreve, um conjunto de negros que foram injustiçados ao longo de uma história. E nada ali é perdido, nem os créditos finais. Vale a pena atentar à eles.
A divulgação de “A lenda de Candyman” exaltou várias vezes quem assina o roteiro: Jordan Peele, criador de “Corra!” (2017) e “Nós” (2019). Peele realmente imprimiu uma marca com terror social, com o mundo ser mais apavorante que um demônio ou um monstro vindo pra matar. E desta vez, em conjunto com Win Rosenfeld (produtor de “Infiltrado na Klan”) e a própria Nia DaCosta, a entidade vem como conseqüência.
A lenda diz: “Quem chama por Candyman 5 vezes na frente de um espelho é morto por ele”. E quem o faz no filme, o faz zombando. Mas, por ser um filme com esse trio – Peele/Rosenfeld/Costa – a entidade ganha uma resignificação: Se o Candyman um ser que nasce das apropriações de espaços negros, da minimização de histórias negras, e das injustiças cometidas contra negros, o monstro vem pelo desconhecimento. E o desconhecimento traz a violência que o filme imprime. No fim, a morte e a dor são as consequencias por desconhecer e descaracterizar. E isso não é diferente na sociedade: A violência que tentam atribuir aos guetos nada mais é do que a reação à quem equivocadamente a provoca sem saber. Em “A Lenda de Candyman”, Nia traz isso pelo terror.
O pecado do roteiro é não ser tão orgânico quanto em outras assinaturas de Peele, como “Nós” e “Corra”. Mas isso não tira méritos do filme, que traz Yahya e Parris muito bons em seus papéis.
Esse texto foi escrito por alguém que não vê filme de terror por padrão, mas que muito é cercado pelos significados do terror social impressos pelos filmes. E isso é um gosto de rever. E ainda que sendo um filme baseado em outro, “A lenda de Candyman” tem brilho próprio e desperta interesse. Pela lenda, pela história, e pelo que quer dizer nas entrelinhas.
E defender e exaltar a direção de uma mulher negra faz-se necessário e inegociável, para que a história não escreva outra coisa senão a verdade. Verdade que a dispersão – machista ao negar o lugar de uma mulher, ou social quando se expulsa locais ocupados por pessoas da periferia – tenta fazer constantemente. Como um apicultor, que espanta as abelhas da colméia. A diferença é o que a periferia tem a dar no lugar do mel.
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