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“Nomadland”: O que torna especial a vida itinerante

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Filme que virou protagonista da temporada de premiações fala mais com a vida cotidiana do que aparenta ser.


O que tem demais em uma história de uma mulher em um trailer? Como e por quê um filme conm jeitão indie passa por tantos festivais e premiações e ganha ares de favorito mundo afora?

Nomadland, drama que chega ao público agora, é um dos filmes mais bem quistos da temporada 2021 de premiações, mas ainda está longe do grande público brasileiro. Aqui vamos tentar discorrer sobre o que torna especial o preterido ao Oscar.

Em “Nomadland”, uma mulher encerra sua vida de empregada em uma companhia após a falência da empresa, e passa a viver em um trailer, andando pelos Estados Unidos, conhecendo lugares e apresentando ao espectador a vida de outras pessoas que tem o mesmo estilo de vida (Frances McDormand, de “Quase Famosos”).

Dirigido pela chinesa Chloé Zhao (que será a diretora de “Os Eternos”, da Marvel), o filme possui três pontos importantes para contar sua história: Uma atriz que se doa, um elenco espontâneo e uma fotografia que fala tudo sem dizer nada.

Frances McDormand

o primeiro deles é Frances McDormand, uma atriz que já tem Oscar e não tem vergonha de fazer papéis de pessoas maltratadas pela vida, à margem da sociedade considerada “normal”. Ela já havia conseguido essa proeza em “Três anúncios para um Crime”. Agora, em “Nomadland”, é como se ela fosse a única que pudesse interpretar o papel de Fern. McDormand vai para aquela vida nada fácil, de permutas e trabalhos temporários, mas sempre com a voz suave e cativante de alguém que o faz com convicção. Dificilmente outras atrizes conseguiriam mergulhar tão profundamente no papel como Frances viveu, e defender a causa tão tranquilamente como ela o faz em uma das cenas que explica o filme, onde ela tem um diálogo com sua irmã em uma casa de família classe-média americana.

A vida dos verdadeiros viajantes

O outro ponto de sustentação do filme são as histórias dos verdadeiros nômades modernos no filme. A diretora gravou cenas de McDormand junto à grupos de pessoas que levam a vida morando em vans, trocando coisas e trocando experiências em grandes feiras. Gente como Bob Wells, um conhecido YouTuber nos EUA e apoiador da moradia sobre rodas.

Outra grande personagem da vida real é a mulher que conhecemos como Swankie. Segundo o IMDB, Swankie e outras pessoas que são filmadas no longa sequer sabiam que Frances McDormand era uma atriz, tornando ainda mais significativa e natural as interações dela com os Vandwellers (termo para descrever as pessoas que vivem em vans) no filme. Essa troca orgânica rende diálogos mais valiosos, de experiências de vida completamente fora do horizonte de quem vive em cidade.

Fotografia minimalista e bem-feita

Apoiada nos cenários naturais dos EUA, o cinegrafista Joshua James Richards (de “Reino de Deus”) fez um trabalho bonito de fotografia em Nomadland. Mostrando a aridez das estradas, o vazio dos ambientes e aquela sensação estradeira de verdade, de quem sempre está em uma parada para o próximo ponto da viagem. Parece óbvio em road-movies, mas não é simples, porque uma parada tende a parecer uma cena à parte, solta da obra. Em “Nomadland“, isso é continuamente “em progresso”, “à caminho”. Parte disso, pela escolha de câmeras empregada por Richards, que já havia trabalhado com Chloé Zhao em “The Rider” (2017).

Uma moral da história válida

“Nomadland” tem um ritmo vagaroso, mas que compensa pela moral da história. A personagem principal não é uma “mendiga” ou “sem-teto” (Em uma das cenas, inclusive, Fern explica a uma garotinha que é uma “sem casa, não sem-teto”). Ela é alguém que decidiu viver àquela maneira. Entendendo isso, se entende que o filme não é um road-movie, porque Fern não está indo de um ponto ao outro… Não no estilo de filme que conhecemos, onde no ponto B a história acaba. A vida dela é nas estradas e em minivans; Os perrengues são diários e não pontuais.

Com isso em mente, podemos pensar nas outras coisas que o longa quer nos apresentar: Ele é uma análise de fora ao mundo em que vivemos. “Nomadland” quer se conectar com as pessoas que vivem suas vidas ‘normais’ na roda dos ratos, onde crescem e vivem trabalhando pra juntar dinheiro para ter uma velhice com aposentadoria “tranquila”, enquanto não vivem nada dessa esperança, e sequer tem certeza de que a tal velhice chegará. Esse pensamento está longe de ser ideológico nem irreal, porque essa é a nossa vida urbana: Não tem a ‘vida fácil’ ou o ‘final feliz’, e ainda assim, dormimos e acordamos esperando o tal prêmio. No fim, o longa mostra um olhar ‘de fora’ desse meio sobre a vida que levamos dentro dele, enquanto quer só demontrar o que é aquele caminho na estrada, sem julgamentos.

Ao mesmo tempo, “Nomadland” também questiona o sonho da casa própria, que é mundial, não só americano: Afinal, esse pensamento de trabalhar 30 anos da sua vida pra comprar um imóvel por muito mais do que ele vale, sem se tocar que 30 anos É UMA VIDA: Será que é realmente válido? A que preço esse sonho está custando? E aí rolam inclusive referências à crise imobiliária de 2008 dos Estados Unidos, na única sequência “à parte” da trilha que o filme traça para si.

Swankie (ao centro). A itinerante sequer sabia que Frances McDormand era uma atriz.

Apesar de um jeitão de filme cabeça de festival (que é), Chloé Zhao fez de seu “Nomadland” quase um documentário americano, mas com subtextos bem comuns à vida das pessoas mundo afora. Um filme não tão fácil de se prender por roteiros e edições, mas totalmente digerível pela entrega e uma atriz fascinante e livre de amarras de história. No fim, a combinação dos elementos faz a história parecer chegar aonde a diretora, não a personagem do filme, tem vontade que se chegue. E essa precisão técnica precisa sim ser admirada como obra, porque demonstra um entendimento e domínio muito grande do que é transmitir uma mensagem através do cinema e em si.

Aí mora o mérito de “Nomadland“: A Fern de Frances está sempre on the way. Mas a mensagem de Chloé Zhao chega lá.

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Rickk Barbosa

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